sábado, 9 de janeiro de 2010

'O colapso da isonomia nas universidades estatais' - O Globo

'O colapso da isonomia nas universidades estatais' - O Globo
por Luis Paulo Vieira Braga

A voracidade fiscal do Estado brasileiro provocou a oneração da folha salarial de modo geral, inibindo a criação de empregos formais e os reajustes salariais. O rebaixamento salarial, agravado na época de inflação alta, provocou reações heterodoxas por parte dos assalariados, que buscaram desde as formas clássicas de reivindicação salarial por meio de greves e protestos, passando pela ação judicial, até procedimentos de natureza individual, que no conjunto estão levando ao colapso da isonomia nas universidades estatais. O presente texto alerta para o caos em que está se tornando o plano de cargos e salários dos docentes das instituições federais de ensino.
O intervencionismo governamental na economia ao longo das recentes décadas produziu uma série de planos emergenciais para tentar corrigir desequilíbrios financeiros e econômicos: Plano Collor, Plano Bresser, Plano Verão etc. Os servidores públicos e suas associaçôes de classe identificaram em muitos casos prejuízos à sua categoria, ingressando então na Justiça para reaver direitos perdidos. Devido às peculiaridades do rito judicial, os ganhos de causa não benefeciaram a todos uniformemente. Dependendo da vara, do escritório de advocacia ou do sindicato, alguns professores foram beneficiados, outros não, configurando uma flagrante quebra de isonomia salarial generalizada por todo o país, gerando novas ações para reparar as consequências das ações precedentes, em uma espiral jurídica infindável.
O emprego público no Brasil sofre de alguns estigmas: ganha-se pouco, mas trabalha-se pouco, difícil de conseguir um, impossível de ser mandado embora. No rastro desta leniência, e aproveitando-se do expediente constitucional sobre acumulação de cargos públicos, muitos professores 40 horas em dedicação exclusiva que tinham tempo para se aposentar assim o fizeram e reingressaram, por concurso, muitas vezes no mesmo departamento, para uma nova matrícula 40 horas em dedicação exclusiva.
O fato contrasta com a figura do professor emérito ou do colaborador voluntário, que continua contribuindo para a universidade graciosamente após sua aposentadoria, embora só tenha uma matrícula. Apesar de algumas tentativas de inibição de reingresso na universidade através deste expediente, liminares na Justiça vêm garantindo a sua continuidade.
Em face da retomada da massiva intervenção estatal na economia, já anteriormente à recente crise mundial, pelo governo de coalizão liderado pelo PT, a mordida do Leão começou a doer na própria carne. A solução foi criar ou expandir programas de bolsas - que não geram encargos - ao invés de contratos formais de trabalho, contraditoriamente ao que o governo frequentemente cobra da iniciativa privada.
Bolsas não são um instrumento estranho à universidade, sempre foram utilizadas como instrumento de fomento à formação, à implantação de uma nova área e assim por diante. No entanto, cada vez mais alguns tipos de bolsas vêm sendo um subterfúgio para não criar novos contratos de trabalho, ou encobrir aditamentos aos contratos já existentes.
É o caso das bolsas de produtividade em pesquisa pagas aos professores 40 horas em dedicação exclusiva das universidades estatais. Gradualmente o CNPq, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, vem ampliando uma folha de pagamento paralela ao SIAPE que remunera professores com produtividade em pesquisa. A sua duração pode ser indefinida. A sua concessão, em tese, depende da produção científica do candidato, na prática, essencialmente, do seu êxito em publicar numa lista de periódicos elaborada pela CAPES, denominada QUALIS, e da anuência dos seus pares.
As consultorias praticadas nas universidades estatais não deixam de configurar em tese uma acumulação indevida. No entanto, o volume destas atividades cresceu tanto que merece um parágrafo à parte neste texto. Existem dois tipos mais comuns de prestação de serviço: projetos e cursos pagos. Eles foram legalizados pelo expediente de sempre - a mais valia. Ou seja, se pagar uma taxa ao Estado pode fazer, desde que alguns procedimentos jurídicos sejam respeitados.
Um deles foi a criação de fundações de apoio á universidade, que se incubiram da gestão destes recursos, ordenando despesas, fazendo pagamentos, etc, e repassando às universidades os saldos destas atividades, socorrendo assim o combalido caixa das IFES. Porém, em muitos casos as fundações foram o rabo que abanou o gato, e não o contrário. Gozando de autonomia financeira, movimentando vultosos recursos, diversas fundações se envolveram em rumorosos escândalos, dos quais o da Universidade de Brasília tornou-se o mais paradigmático.
A degradação dos salários dos docentes das universidades públicas provocou reações que vão do individual ao coletivo, do legal ao marginal, da ortodoxia à heterodoxia. No embate por uma ordenação deste quadro altamente instável dois extremos se confrontam - a restauração de uma isonomia estrita e a livre negociação de salários. Recentemente, o governo tentou uma ordenação das diversas formas de remuneração docente pela sua incorporação no contracheque, através de gratificações. Como na proposta a Dedicação Exclusiva passaria (corretamente) a ser uma gratificação e não mais um direito adquirido, independente do seu cumprimento ou não, o corporativismo uniu liberais e classistas no boicote ao novo plano e mesmo à sua discussão. Fica tudo como está até onde der.


Luis Paulo Vieira Braga é professor associado da UFRJ

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